domingo, 2 de junho de 2013

A CASA DOS ESPÍRITOS - Isabel Allende

Por Ema Dias dos Santos
    Numa narrativa em que realidade e ficção se misturam, a "casa dos espíritos" é o principal cenário onde se desenrola a saga da família Del Valle/Trueba, através da qual a autora dá seu testemunho sobre a história do Chile no século XX até a década de 70.
Conforme afirma Alexandra Gomes, em seu artigo “A Casa dos Espíritos”, Isabel Allende começou a escrever a obra em 1981, como uma espécie de carta de despedida para seu avô, que estava à morte. As referências a fatos e pessoas reais perpassam toda a narrativa: o golpe militar; o assassinato do Presidente Salvador Allende (tio da autora), que no livro aparece como o “Presidente”; o carisma, a obra e a morte do poeta Pablo Neruda, denominado apenas de “O Poeta”; a trajetória do cantor revolucionário Victor Jara, através do personagem Pedro Tercero – o qual, entretanto, terá um destino melhor na ficção do que a tortura e o assassinato que, na verdade, seu inspirador sofreu.
Mas, apesar de tanta e tão dura realidade, o tom fantástico impera. Misticismo, espiritualidade, mitologia e simbologias são aspectos muito presentes, relacionados sobretudo às personagens femininas. 
Embora o personagem principal seja o duro patriarca Esteban Trueba, as mulheres têm personalidades fortes e são decisivas para o movimento da narrativa. Esses dois universos estarão em constante conflito. Desde a bisavó de Alba, Nívea Del Valle, que lutava pelo direito ao voto feminino e ao acesso à instrução; passando pela avó Clara que, a despeito do marido, continuou essa luta; pela mãe Blanca que também se preocupou com os excluídos e, além disso, desafiou o pai em nome de seu amor; e pela própria Alba – uma das principais vozes que narra esta história polifônica, e na voz de quem se encerra a narrativa – a qual desenvolveu uma intensa atividade de apoio aos perseguidos pela ditadura, até cair ela própria nas mãos da polícia política. São todas mulheres que, em nome do que acreditavam, enfrentaram, não apenas a força do patriarcado – personificado na figura de Esteban -, mas também o conservadorismo da alta sociedade chilena.
 E é através de uma personagem feminina que, talvez, nos venha uma das grandes reflexões provocadas por este livro. É Clara quem nos ensina, com simplicidade e sabedoria, que precisamos aceitar nossos filhos em sua singularidade. A empatia estabelecida entre ela e seus filhos contrasta com a distância que existe deles em relação ao pai, e lhe permite uma relação bem mais próxima e profunda do que poderia ter obtido se tivesse optado por submetê-los à adaptação às expectativas externas. Ela tem a coragem de colocar os sentimentos de seus filhos acima de qualquer programa educativo.
E a obra nos traz outra importante lição, provavelmente a maior de todas, que é a da inutilidade do ódio. Mesmo a truculência de Esteban Trueba vai se modificando, permitindo-lhe relações diferentes com Pedro Tercero, com a neta Alba, com o espírito de Clara, e consigo mesmo. No final, há um trecho muito eloqüente em que Alba registra, magistralmente, essa compreensão:

“Será para mim muito difícil vingar todos os que têm de ser vingados, porque a minha vingança não seria senão outra parte de um rito inexorável. Quero pensar que o meu ofício é a vida e que a minha missão não é prolongar o ódio.” (p.468)


Sobre a obra, veja também os artigos de Alexandra Gomes (http://booklovers.blogs.sapo.pt/987.html) e de Cláudia de Sousa Dias (http://hasempreumlivro.blogspot.com/2008/11/casa-dos-espritos-de-isabel-allende.html).  


(La casa de los espiritus, 1982.)

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

ROMANCE D’A PEDRA DO REINO, de Ariano Suassuna

Por Fernando Gurgel Filho

Carlos Drummond de Andrade disse: "Extraordinário romance-memorial-poema-folhetim que Ariano Suassuna acaba de explodir. Ler esse livro em atmosfera de febre, febril ele mesmo, com a fantasmagoria de suas desaventuras, que trazem a Idade Média para o fundo Brasil do Novecentos, suas rabelesiadas, seu dramatismo envolto em riso. Ah, escrever um assim deve ser uma graça, mas é preciso merecer a graça da escrita, não é qualquer vida que gera obra desse calibre".

Faltou pouco para o Suassuna escrever "o" romance do Brasil. A partir de fatos históricos, como a chacina ocorrida no sertão de Pernambuco em que inocentes foram assassinados para fazer ressuscitar o Rei Dom Sebastião - a própria contradição do fato é tragicômica - Suassuna coroa o Movimento Armorial com um romance de armas, brasões, fidalguias, reis e vassalos, existentes apenas na imaginação doentia de sertanejos fanáticos.

O narrador, que se autodenomina Dom Dinis Quaderna, em estilo que ele mesmo chama de régio-sertanejo, transforma "uns cavalos pequenos, magros e feios, uma porção de gente suja, magra faminta e empoeirada, arrastando ... uma porção de velhos animais de Circo, famélicos e desdentados, numa tropa pobre e amontoada" em uma "Cavalgada fidalga composta de Ciganos, vestidos de gibões medalhados e cravejados, trazendo onças,veados, gaviões e cobras... ...precedida por duas bandeiras, uma com onças e contra-arminhos, outra com coroas e chamas de ouro em campo vermelho."

Essa visão distorcida da realidade revela, tão-somente, a má formação do narrador e as suas visões de um mundo fantástico em que ele almeja implantar uma monarquia sertaneja-negro-tapuia em oposição à elite ibérica-mouro-portuguesa. A caricatura do País é perfeita, onde a elite e a intelectualidade estão representadas por um filósofo de direita que se diz oriundo da melhor estirpe dos coronéis de engenho e outro de esquerda que diz representar a alma sertaneja e mestiça do índio e do escravo. Os dois vivem às custas do narrador que, em tudo, parece representar o Povo. E se servem dele até para firmar suas idéias caricatas de um País tragicômico.
É um livro que merece ser lido e relido, atentando para os tangenciamentos com a realidade dos sertões e para os fatos históricos narrados - na forma distorcida pelo narrador, claro.

CADERNO DE LITERATURA

Organizador: Ernesto Fonsêca
Editor: Almir Júnior
13ª Edição, 1º de dezembro de 2009

HORIZONTE PERDIDO, de James Hilton

Por Ema Dias dos Santos
Quatro passageiros - um jovem americano (Mallinson), e três ingleses (o corajoso Conway, o suposto Barnard, e a missionária Miss Brinklow) - embarcam num avião que lhes é designado para fugir de uma conturbação no Extremo Oriente. Entretanto, ficam surpreendidos ao constatar que o rumo tomado pela aeronave é outro, e que um piloto de fisionomia oriental se apoderara do aparelho. Eles haviam sido raptados. Seu destino: Shangri-La, nas altas montanhas do Tibete.

Através deste livro, James Hilton concebeu uma versão da utopia do paraíso perdido que se tornou clássica, sendo incorporada no imaginário coletivo como um de seus sinônimos. Além de uma instigante reflexão sobre o tema, que suscita muito mais perguntas do que apresenta respostas, a história é construída na forma de aventura, e muito bem narrada, o que compensa largamente eventuais deficiências na construção dos personagens.

Os valores ocidentais e orientais estão em constante jogo, quer em confronto, em convivência ou em interação. O próprio mosteiro tem tradições budistas e também cristãs. Questões interessantes podem brotar das reações dos personagens diante das diferenças culturais:

    "- Que é que os lamas fazem?
     - Devotam-se à contemplação, minha senhora, e à pesquisa da sabedoria.
     - Mas isso não é fazer alguma coisa.
     - Então, minha senhora, não fazem nada.
     - Era o que eu pensava." (p.108)
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    "É significativo que os ingleses considerem a indolência um vício. Nós, pelo contrário, lhe damos grande preferência sobre a pressa. Não é verdade que há demasiada pressa no mundo atualmente, e não seria talvez melhor se houvesse mais pessoas indolentes?" (p.185)
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   "- É justamente como eu disse: este estabelecimento atende a todos os gostos.
     - É possível, se você gosta da prisão – repontou Mallinson.
     - Bem, sobre este assunto há dois modos de ver. Meu Deus, quando se pensa em toda a gente que daria tudo o que tem para sair da balbúrdia e vir descansar num lugar como este, e não pode sair! Seria o caso de perguntar quem está preso: nós ou eles?" (p. 199-200)
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    "Arre, que me enforquem se vejo alguma coisa de agradável em continuar vivendo quando já se está meio morto! Antes uma vida curta, mas alegre." (p.233)

Contudo, apenas a poucos são oferecidas as possibilidades mais plenas de incorporar-se a esta utopia. Talvez porque poucos são os que conseguem superar o mero evasionismo - visão dentro da qual a busca do paraíso é sempre uma fuga - para encarar o desafio do autoconhecimento:

    "Adquirirá calma e profundeza, madureza, sabedoria e o cristalino encanto da memória. E, mais precioso que tudo, terá o tempo, esse dom tão raro, tão desejado, que os países ocidentais foram perdendo à medida que o buscavam com mais ardor." (p.169)

E, ao deparar-me com o trecho em que é explicitada a missão de Shangri-La, diante de um futuro assombrado pelo fantasma de uma guerra que a tudo destruiria, não pude deixar de focar minha atenção na relevância que os monges dão à biblioteca, à leitura, ao estudo e às artes:

    "Talvez. Não podemos esperar nenhuma mercê, mas há uma tênue esperança de que sejamos esquecidos. Aqui ficaremos com nossos livros, nossa música e nossas meditações, conservando as frágeis elegâncias de uma época moribunda e buscando a sabedoria de que os homens hão de precisar quando tiverem esgotado todas as suas paixões. Temos uma herança a preservar e transmitir." (p.173-174)

Mesmo relativizando essas concepções à luz do tempo e de tantas transformações que ocorreram desde que a obra foi escrita, faz-nos pensar o quanto é importante não perder de vista o papel vital que a cultura desempenha na trajetória da humanidade, até porque assim poderemos lidar melhor com as mudanças que ainda nos aguardam. Afinal, como afirmou o próprio Bill Gates: “Meus filhos terão computadores, sim, mas antes terão livros. Sem livros, sem leitura, os nossos filhos serão incapazes de escrever - inclusive a sua própria história.”


Lost horizon, Copyright 1933.
  
 Tradução VILA, Francisco Machado e VALLANDRO, Leonel. 14 ed. São Paulo: Círculo do Livro. s.d.
(Há outras edições brasileiras, inclusive mais recentes.)



CADERNO DE LITERATURA
Organizador: Ernesto Fonsêca
Editor: Almir Júnior
13ª Edição, 1º
de dezembro de 2009

PRIMAVERA CON UNA ESQUINA ROTA, de Mario Benedetti

Por Fernando Fortes

Foi editado em português um dos meus livros preferidos, PRIMAVERA CON UNA ESQUINA ROTA do uruguaio Mario Benedetti. O título da versão brasileira ficou PRIMAVERA NUM ESPELHO PARTIDO.

Li a versão em espanhol. Li também uns capítulos do livro traduzido e a tradução me pareceu boa. Ler no original com certeza é melhor, mas o lançamento da versão brasileira dá acesso e visibilidade maior a esta grande obra.

Cada capítulo é escrito por um personagem diferente, alternadamente: Santiago, o personagem “principal” que está preso pela ditadura uruguaia. Graciela, mulher de Santiago, vivendo no exílio na Espanha. Beatriz, a filha de seis anos, que escreve como alguém de seis anos, criando os capítulos mais divertidos do livro. Além destes, “escrevem” o pai de Santiago, um amigo que também está no exílio e o próprio autor, Mário Benedetti, contando alguns casos pessoais relacionados com o tema do exílio.

Essa fórmula, cada capítulo escrito por “uma pessoa” diferente, é muito interessante e faz com que cada capítulo possa ser lido isoladamente.

O livro é muito bom, e fica aí a dica de uma ótima leitura.

Sobre o autor:

Mario Benedetti, morreu em maio deste ano. Sua morte foi considerada uma grande perda para a literatura mundial.

Publicou mais de 80 livros, mas é pouco conhecido aqui no Brasil. Disponíveis por aqui, acho que só o “Primavera...” e “A Trégua”, que não li mas dizem que é muito bom. Além disso, Benedetti tem uma extensa obra de poesia e é considerado uns dos grandes poetas de língua espanhola.

Morreu aos 88 anos, estava doente, parece que meio desanimado desde que a esposa dele morreu em 2006. Foram casados por 46 anos. Foi poesia até na hora de morrer...
CADERNO DE LITERATURA

Organizador: Ernesto Fonsêca
Editor: Almir Júnior
13ª Edição, 1º de dezembro de 2009

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

ENDURANCE, de Caroline Alexander

Por Ulisses Amaral

Na segunda edição deste Caderno recomendei aos caros colegas aquele que seria meu livro de cabeceira: A Incrível Viagem de Shackleton, de Alfred Lansing. Agora estou recomendando uma obra auxiliar, complementar àquela – Endurance (este era o nome do navio de Sir Ernest Shackleton), a qual traz ao grande público fotos inéditas da expedição. Embora as fotos tenham sido feitas no longínquo ano de 1914, no prelúdio da Primeira Grande Guerra, a boa qualidade das mesmas é impressionante. Por mais que o autor do primeiro livro (Lansing) seja detalhista e fiel na sua descrição, nada como conferir, agora, a real situação revelada pelo trabalho artístico do fotógrafo oficial da expedição, no livro de C. Alexander. Embora possa parecer impertinência de minha parte citar outra obra sobre um mesmo assunto, peço a devida vênia dos meus camaradas para fazê-lo, porque a divulgação das fotos, até então inéditas, faz toda a diferença neste momento. A autora tem excelente currículo como escritora, curadora de exposições, museóloga, dentre outras atividades ligadas ao resgate de fatos ancestrais.

SINOPSE DA OBRA – A autora recria a trajetória de sir Ernest Shackleton na águas do Pólo Sul, ilustrada com mais de 140 fotos inéditas do australiano Frank Hurley – um dos membros da expedição. Quando, em agosto de 1914, Hurley embarcou seu pesado equipamento fotográfico no ‘Endurance’, navio especialmente projetado para navegar em águas congeladas, tinha consciência exata de sua missão – registrar a primeira travessia a pé do continente antártico. O grupo jamais chegou ao seu destino. Por outro lado, protagonizaria uma das maiores aventuras já vividas pelo homem – os 28 tripulantes passaram muitos meses perambulando sobre o oceano congelado, no Pólo Sul, tentando encontrar socorro, e acabaram regressando sãos e salvos à Inglaterra, sem uma única vida perdida.
CADERNO DE LITERATURA

Organizador: Ernesto Fonsêca
Editor: Almir Júnior
12ª Edição, 19 de outubro de 2009

COMÉDIAS DA VIDA PRIVADA, de Luís Fernando Veríssimo

Por Ema Dias dos Santos

Nos três volumes produzidos dentro deste tema e que se tornaram clássicos do humor brasileiro - Comédias da vida privada, Novas comédias da vida privada e O melhor das comédias da vida privada – Luis Fernando Veríssimo reúne crônicas construídas sobretudo dentro do universo da classe média, explorando a complexa profusão de sentimentos, relações, pensamentos e desejos que há sob a aparente banalidade do cotidiano. O riso é o elemento transformador que nos permite transitar com leveza por este intrincado mundo do íntimo e do privado, em que tragédia e comédia, insólito e corriqueiro, loucura e normalidade tantas vezes se confundem.

São 101 crônicas em Comédias da vida privada (Porto Alegre: L&PM, 1994. 326 páginas), 123 crônicas em Novas comédias da vida privada (Porto Alegre: L&PM, 1996. 344 páginas) e 87 (sendo 35 novas) em O melhor das comédias da vida privada (Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. 293 páginas).

CADERNO DE LITERATURA

Organizador: Ernesto Fonsêca
Editor: Almir Júnior
12ª Edição, 19 de outubro de 2009